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Dez trabalhadores são resgatados em situação análoga à escravidão, dormindo sob lonas no Pantanal

lém das duas cidades, também foram fiscalizadas propriedades da zona rural do município de Aquidauana.

Por Viviane Freitas | 22 julho, 2022 - 18:06

Um grupo de nove trabalhadores foi resgatado em situação de escravidão em três propriedades rurais nos municípios de Corumbá e Porto Murtinho, na região do Pantanal de Mato Grosso do Sul, durante operação realizada entre os dias 11 e 22 de julho. Além das duas cidades, também foram fiscalizadas propriedades da zona rural do município de Aquidauana.

Segundo a força-tarefa do MPT (Ministério Público do Trabalho), DPU (Defensoria Pública da União), Ministério do Trabalho e Previdência, na Fazenda Matão, em Porto Murtinho, um idoso de origem paraguaia foi encontrado em condições de extrema vulnerabilidade. Ele era o único mantido em um alojamento extremamente precário, dividindo espaço com animais e com agrotóxicos.

Em depoimento, o idoso contou viver nessas condições há mais de 20 anos. Antes, trabalhou na Fazenda São Francisco, do mesmo proprietário. Ele e parte dos trabalhadores bebiam água com resíduos sólidos e precisavam pagar pela própria alimentação. Caso consumissem carne fornecida pela fazenda – cuja principal atividade é a criação de bovinos – um valor era descontado da remuneração mensal (R$ 1,5 mil).

O grupo tinha acesso à cidade mais próxima, Bonito, que fica a mais de 130 quilômetros apenas uma vez ao mês, e era conduzido na carroceria de um caminhão da fazenda em uma estrada de chão, com visibilidade prejudicada pela poeira. Além disso, outros trabalhadores estavam sem os devidos registros em carteira e demais direitos trabalhistas, como FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço) e férias.

A situação do idoso em condições degradantes, por duas décadas, o isolamento e a exploração irregular de sua força de trabalho, sem que tivesse acesso a diversos direitos trabalhistas, ou a oportunidade de retornar ao Paraguai, caracterizaram para Auditoria-fiscal do Trabalho como condição análoga a de escravidão.

Responsáveis da Fazenda Matão, em Porto Murtinho, recusaram acordo extrajudicial por situação de escravidão (Foto: MPT/MS)
De acordo com o procurador do Trabalho, Paulo Douglas de Moraes, e o defensor público federal, Rodrigo Esteves Rezende, também houve o agravante do caráter discriminatório em relação aos demais trabalhadores da fazenda.

Após o flagrante, o MPT e a DPU convocaram o empregador, proprietário da Fazenda Matão, para uma audiência administrativa, realizada na sede da Promotoria de Justiça de Bonito. Os advogados do fazendeiro recusaram o acordo proposto.

A Auditoria calculou o pagamento das verbas rescisórias ao idoso totalizando R$ 84 mil – FGTS, férias e 13º salário – que não foram pagos pelo empregador durante todo o vínculo. Também foi calculado R$ 75 mil, equivalente a 50 vezes o salário do trabalhador, a título de danos morais individuais, e a fim de reparar a grave lesão à sua dignidade.

Na entrada da fazenda, há uma placa informando que a propriedade recebeu mais de R$ 915 mil, por meio do FCO (Fundo Constitucional do Centro-Oeste), para compra de bovinos. No entendimento do MPT, esse contexto agrava ainda mais a situação, uma vez que o acesso a recursos públicos é condicionado ao cumprimento da função social da propriedade.

“Todos nós, membros da força-tarefa, lamentamos o descaso deste patrão, que na oportunidade de firmar um acordo, encontrava-se no Canadá. Diante da possibilidade de reparação da situação de abandono e indigência a qual conscientemente submeteu o trabalhador por todo este tempo, crendo na sua impunidade, manteve-se inerte”, afirmou o procurador Moraes.

Diante da inviabilidade de uma solução extrajudicial, o MPT e a DPU vão acionar a Justiça reparação integral aos danos materiais e morais para o trabalhador idoso por mais de 20 anos, além de retirá-lo da propriedade.

Corumbá
Em outras duas propriedades rurais, ambas no município Corumbá, os empregadores foi diferente. Os proprietários das fazendas se comprometeram, a assinarem TAC (Termo de Ajuste de Conduta) e pagar cerca de R$ 22,5 mil para cada um dos oito trabalhadores flagrados em condições degradantes.

Água ficava armazenada em galões de óleo diesel e trabalhadores em situação de escravidão já passaram mal (Foto: MPT/MS)
O total das verbas rescisórias e danos morais individuais somam mais de R$ 180 mil, além de mais R$ 80 mil a título de dano moral coletivo a ser revertido na aquisição de bens para o aparelhamento da PMA (Polícia Militar Ambiental) do estado.

Os TACs visam corrigir as irregularidades identificadas pela Auditoria-fiscal do Trabalho no decorrer da operação de resgate e, sobretudo, à proteção de futuros trabalhadores contratados para a execução dos serviços rurais.

Uma das vítimas resgatadas, um homem de 27 anos contratado como cozinheiro há quatro semanas em uma das fazendas. Contratado em Corumbá por um intermediador, por diária de R$ 50, ainda não havia recebido nada. Mas, foi adiantado um vale de R$ 400, para compra de mantimentos básicos, como sabonete, papel higiênico e sabão.

Ele e mais dois colegas dormiam em um barraco de lona, sem acesso à energia elétrica e usavam o mato para fazer as necessidades fisiológicas e tomar banho. A água para consumo vinha de um poço artesiano da fazenda, que ficava armazenada em um tambor de diesel e estava completamente turva no momento do flagrante.

O trabalhador disse, em depoimento, que já havia passado mal por beber a água. Ele mesmo recorreu às “plantas da fazenda” na tentativa de a saúde física. A jornada começava antes do sol nascer, por volta das 4 horas da manhã, e só terminava às 16 horas. No caso dele, sequer havia direito à folga: o serviço de cozinheiro era realizado de domingo a domingo.

Um colega de trabalho de 46 anos, havia sido contratado diretamente pelo proprietário da fazenda há três meses para construir cercas, ser mangueiro para bezerros e salgadeira para o gado. Ele retirava e fazia os postes a partir de madeira plantada na própria fazenda, utilizando uma motosserra sem nunca ter passado por qualquer tipo de treinamento para operar a ferramenta. Também não recebeu nenhum EPI (Equipamento de Proteção Individual) para evitar acidentes durante a execução do serviço.

Na outra propriedade rural, uma mulher que atuava como cozinheira, sem direito à descanso semanal, assim como os demais trabalhadores, faziam a construção de cercas no momento do flagrante. Um deles afirmou ter que consciência de que as condições de trabalho eram inadequadas, mas disse não ter outra opção, a não ser se submeter a elas se quisesse sustentar a família.

Trabalho escravo contemporâneo em MS
O número de vítimas do trabalho análogo ao de escravo em Mato Grosso do Sul, no primeiro semestre de 2022, já é quase equivalente ao registrado em todo o ano de 2021. Até o dia 21 de julho, 72 trabalhadores foram resgatados, conforme relatório da Auditoria-fiscal do Trabalho, órgão vinculado ao Ministério do Trabalho e Previdência. Durante todo o ano passado, 81 trabalhadores foram flagrados trabalhando em condições degradantes.

Ainda conforme o relatório, neste ano foram realizadas oito ações fiscais, em propriedades rurais localizadas nos municípios de Porto Murtinho, Bela Vista, Ponta Porã, Corumbá e Naviraí. No momento desses flagrantes, os trabalhadores atuavam na aplicação de herbicidas em lavouras, construção de cercas, carregamento de eucalipto, roçada de pasto, plantio de cana-de-açúcar e criação de bovinos.

Em 2021, foram realizadas 11 ações fiscais com resgate de trabalhadores, em Campo Grande, Sidrolândia, Porto Murtinho, Anastácio, Antônio João, Ponta Porã e Corumbá. As vítimas atuavam no cultivo de soja, extração de madeira, criação de bovinos, construção de cercas para confinamento de gado e em uma obra da construção civil, na zona urbana.

 

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